A Queimada

Era uma quarta feira de muito sol em um pequeno bairro do interior da Região dos Lagos - no Rio de Janeiro. Sem asfalto, sem muita infraestrutura, mas com seu lado romântico, bonito, com vista distante para o mar, entre morros e com cheiro de mata.
Lá chegava eu para visitar meus pais que, já aposentados, volta e meia, ficavam ‘na casa de campo’ por alguns vários dias, para fugirem da loucura dos grandes centros urbanos em que viviam.
Fazia 15 dias que não os via, e como viajara para aqueles lados, não custava nada “adentrar o mato”, visitá-los, comer a famigerada “comida da mamãe” e rir um pouco da histórias de meu pai.
Lá chegando já buzinava, na rua de barro, poucas casas (quatro pra ser mais exato), sendo uma de meus pais. Muitas árvores, vento gostoso e no final, bem no alto, meu pai aparecia acenando e dizendo:
- A porteira tá aberta (todo orgulhoso do portão de entrada que ele mesmo fizera)!
Entrei, os abracei, bebi água, deitei-me na rede da varanda (que delícia!) e fiquei a observar o pasto bastante seco e amarelado.
- Engraçado, né, pai? Aqui tem é muita terra, pouca casa, árvore pra tudo que é canto né?
- Sente o ar meu filho, respira fundo. Ôôô, coisa boa né? Isso aqui é remédio pra qualquer doença que a criatura pode ter, né não?
- É sim. Aqui tem poucos vizinhos? Vocês não têm medo?
- Tenho medo da colméia inchada de abelhas e com uma rainha mal encarada, que apareceu aí e um “time de marimbondos” que estão cercando o quintal – falava aos risos.
A casa do vizinho mais próximo (à frente) ficava a uns 70 metros de distância e como o mesmo tivera ido embora, deixou o irmão tomando conta com seus filhos e esposa.
- Gudo (como chamo meu pai), quem são aqueles ali em baixo?
- Esse ai é o “mondrongão” e os filhos dele, ”mondrongão” é irmão de Hélio, dono da casa.
- Hum, entendi.
- Espia lá, estão indo à praia de novo e largam as duas crianças aí sozinhas, as coitadas não têm nem nove anos de idade.
- Que absurdo – disse eu.
- Não é à toa que é ‘mondrongão, né’? – disse rindo.
O Cheiro de comida gostosa já vinha da cozinha e me deixava ansioso.
- Tá pronto! – disse minha mãe.
Fomos “atacar a bóia” enquanto conversávamos sobre o lugar, sobre morar por lá, sobre a qualidade de vida, o vento, as abelhas, os marimbondos e tudo mais.
Após o almoço - como de costume - deitei no chão e, com a camisa em forma de travesseiro, dormi na sala, meu pai na sua cama e minha mãe foi molhar as plantas no enorme quintal cheio de árvores, plantas e mato.
Ouvia, enquanto “embarcava no meu sono”, minha mãe falando sozinha sobre uma fumaça que aparecia no meio da mata.

Acordei com minha mãe me cutucando e aos berros:
- Acorda, ajuda seu pai, ajuda, tá tudo pegando fogo, vamos fugir!
Fui correndo pra fora e já na varanda pude ver o vento levando todo o fogo pela mata rasteira em tudo que nos cercava. A fumaça ao longe cobria a vista da rua, do mar, das coisas, mas ainda assim, não havia perigo de pegar todo na casa.
- Já liguei pro bombeiro, diz que é assim mesmo(combustão natural), pra ficar calmo – disse meu pai na tranqüilidade.
Enquanto minha mãe gritava:
- Meus Deus, isso não pode, vamos fugir!
- Calma aí mãe, fica tranqüila, isso aí é tudo mato seco e não está alto, não vai chegar aqui, calma, calma.
- A fumaça vai matar a gente!
- Vai nada, nem tem fumaça aqui, tá longe, calma - dizia eu.
Meu pai olhando pela varanda disse:
- Rapaz, tá pegando fogo no quintal do Hélio e o “mondrongão” tá na praia.
-Meu Deus, e aquelas crianças, Jesus? – disse minha mãe mais nervosa ainda.
Quando saímos pra rua vimos a vizinha debaixo, cunhada do “mondrongão”, levando as crianças para sua casa, o que nos deu um grande alívio.
Minutos depois um carro preto em alta velocidade sobe a rua de barro e aparecendo por entre a fumaça da queimada, e parando em frente às terras de meu pai, sai ele, nervoso, de sunga, irritado e visivelmente embriagado: ”mondrongão”.
Desce ele do veículo com sua esposa e mais um casal de amigos (que também moravam no condado). Correram, pegaram galhos verdes, foice e conseguiram apagar o fogo que chegava bem próximo da casa que ele estava e já queimava a antena parabólica e fios.
Após o feito, esbaforido e mancando, “mondrongão” e seu amigo “Demir” vieram até nós e disseram:
- Tocaram fogo nisso aí “porra tudo”, que que tá acontecendo? Quem viu aí?
Mal pararam para fazer esse comentário e continuaram a subir a rua às pressas.
E eu fui atrás, sem entender direito o questionamento dos dois,levando um balde d’água e achando que eles tinham uma solução para o fogo.
Passamos pela fumaça até chegar em uma casa humilde, pequena, no baixo do barranco, sem laje, telhado antigo e quebrado, sem porta “no tijolo”.
Os dois pararam em frente a casa e “mondrongão” gritou com a primeira criança que viu.
- CHAMA LÁ TEU PAI!
Minutos depois aparece o “mais conhecido que moeda de 1 real”, Zé Antonio.
Negro, aparentemente 35 a 40 anos de idade, baixo, magro, sem camisa, descalço e com uma bermuda jeans surrada e a cara de sono.
- PORRA, Zé, “que que” tu tocou fogo nessa porra toda ai, Zé? - disse “mondrongão” aos berros.
Zé, ainda meio tonto, sem entender perguntou:
- Fogo de quê, Sr. Jorge? (fiquei sabendo o nome de “mondrongão)
- Fogo de quê? Fogo de fogo porra, tá aí “lambendo” tudo, “carai”! Foi tu que tocou, não foi?
-Sr. Jorge, que raio de fogo é isso que tu tá falando, “homi”? Tá “bebu”?
- PORRA, Zé olha aí “pros lado”, você tá maluco, Zé? (pegando o homem pelos braços e girando-o 180 graus para ver a fumaça que vinha do pasto e o fogo que se aproximava de sua casa.
-Misericórdiaaaaaa, Jesus, Maria, José, meu Santo Antônio, que diabo é isso?- disse Zé Antônio nervoso.
- É disso que tô “falanu” Zé, desse “carai” de fogo que tu tocou aí nessa porra de mato, Zé!
Foi nessa hora, então, que a “ficha de Zé Antonio caiu”
- HEIIII, como é que é? Tu ta aí “falanu” que eu que “atoquei” fogo nisso tudo, rapá?
- E NÃO FOI, ZÉ?
- EU?
- Ô, “carai”, quem mais havia de ser? Dê dinheiro pra tu, Zé, mas não te dê um “frósforo”, que tu “ataca” fogo “mermu”!
-“Ocê” é malucooo, Jorge? Que eu tô aqui dormindo rapá, desde meio dia, ”tavo” nem “sabenu” dessa desgraça aí fora, rapá!
- A casa então, se deixar, pega fogo com tu dentro dormindo, Zé?
- Rapá, eu “tavu bebu” dormindo e tu vem falar que eu “atoquei” fogo nisso aí?

A confusão estava armada, meu pai do meu lado chegava com mais balde de água, minha mãe, as vizinhas de baixo com vassoura, a mulher de “mondrongão” com a mulher de “Demir” e mais umas 8 mulheres que saíram de dentro da casa de Zé Antônio, um bate boca danado de quem foi, quem não foi que tocou fogo.
E “mondrongão” insistia:
- Quem foi, Zé? Fala que foi você logo, então!
- Foi o DIABO que “atocou” fogo nisso TUDO - disse aos berros Zé Antonio.
A fumaça entrava pela casa de Zé Antonio e mais umas 5 crianças saiam lá de dentro chorando.
- Zé, pelo amor de Deus, semana passada teu filho tocou fogo aí no teu quintal e saiu “alambendo” tudo pros “lado”, Zé, e não foi ele?
- Rapá, isso foi semana passada e eu dei foi uma surra no moleque tão grande que quando acende o fogão pra cozinhar o garoto corre pro quarto pra chorar. Mãe dele tá até pra levar o “muleque” no “psicórogo” e você vem dizer que foi a desgraça do “mininu”?
Ao passo que a confusão estava armada, minha mãe tentava explicar as duas das mulheres - que também estavam do lado de “mondrongão”- que isso poderia ser uma combustão espontânea na mata, devido ao mato seco, muito calor, vidro, papel na mata, lata e etc..
- Como que é, Dona Janete? “cãobutao” de quê?
- Não filha, combustão espontânea, o fogo se inicia sozinho.
- Pelo amor de Deus, eu tô pra mais de “quarenta anu” morando cá pra dentro, nunca que vi “fogo que se a pega sozinho”. Isso aí foi Zé Antônio e essa “família de lacraia” dele que vieram morar aí pra dentro, cambada de BICHO - dizia a mulher aos gritos - apontando pras outras que estavam em volta de Zé Antônio.
Minha mãe tentando explicar o fenômeno para a mulher e “mondrongão” tirando a camisa pra sair “na mão” com Zé Antônio.
- Vem que eu te arrebento, Zé - com as mãos fechadas em punho.
Meu pai até então quieto, pergunta:
- Mas é pra SABER QUEM FOI ou é pra Apagar o FOGO?
- Não, Sr. Fernando, mas tem que saber – disse “Demir”.
- Mas enquanto se quer saber, o fogo tá pegando lá no poste da rede elétrica, aí a gente fica sem luz, sem água e sem saber quem foi que tocou o fogo. Tá bom da gente ir lá apagar, né?
Todos se calaram, viraram os olhos pra baixo da rua e viram o fogo subindo pelo poste de madeira que segurava um enorme transformador.
- Mas aquilo ali é poste de Eucalipto, rapá, aquilo não pega fogo não – disse “mondrongão”.
- Pois agora vê, que que tu entende de mato, rapá? ”Que que tu entende de ‘pranta’?” disse Zé Antonio rindo.
- Bom, vocês ficam aí pra saber quem foi, se eucalipto ou cimento pegam fogo, que eu vou tentar “safar essa onça” com meu balde - disse meu pai me chamando pra ir junto já caminhando pro poste.
Desci com ele e meu balde enquanto o povo todo vinha descendo com foice, pau, galho verde, vassoura, regador, criança correndo com camisa amarrado no rosto parecendo “ninja” e tudo mais.
Todos juntos conseguiram apagar o fogo no poste e, já por essa hora na empolgação, o povo foi batendo, jogando água, cortando e o fogo na mata já ficava bem menor e dava sinais de fim.
O fogo queimou todo o mato seco, inclusive do campo de futebol improvisado ao lado e assim foi terminando o incêndio sem queimar nenhuma casa.
Já se findava o problema e “mondrongão” ainda resmungando pela rua ia descendo pra sua casa – melhor, de seu irmão - e dizendo:
- Meu carro é de álcool rapá, se chega fogo perto ele “exprode!”
Minutos depois, Zé Antônio passa com cara de furioso pela rua enquanto eu e meu pai sujos, com Pé queimado, fedendo e suados ficamos sentados na calçada bebendo água e minha mãe tomando seu remédio pra acalmar.
- Tá vendo aí, filho mais novo, que emoção é morar por aqui?
- É, tô vendo aí que “sanhaço” – disse aos risos.
- Não paga nada pra praticar um exercício físico, viu? Leva balde, joga água, corre, abafa, bate com galho, com vassoura, sobe a rua, desce, uma maravilha e, se quiser, ainda arruma uma luta de “diu jitsu” no meio mato, olha que maravilha!
Passados mais alguns minutos de bate papo, água gelada, risos e, voltado a respirar o ar puro, Zé Antonio volta subindo pela rua, com a cara bem melhor, olhos vermelhos, rindo, visivelmente embriagado novamente, pára em frente à escada e diz:
- Deus sabe o que faz né, Sr. Fernando? Agora tá é cheio de preá e cutia correndo pela rua, já peguei três e tô voltando com “meus menino” pra pegar mais, com o fogo “eles saiu tudo da toca!”
- Mas o que Deus tem com isso, Zé?
- Há, tocou fogo aí no mato ué!
- Mas você não tinha dito que foi o diabo que tocou fogo nisso tudo, rapá?
- Vixiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii,disse, né? Sei quem foi não ó, mas hoje lá em casa tem carne pra dar e vender, ô, “grória”, “inté!” Vou trazer um pedaço pro senhor!
E foi cambaleando pela rua...
- Tá vendo, até carne se ganha nesse lugar, por falar nisso, repete aí filho: paca, tatu, cotia não
- Pra quê isso?
- Repete ué.
- Paca, tatu e cotia não.
- Cotia não.
- Hã?
- Eita, meus tempos de criança! - disse rindo.

Comentários

  1. Muito bom teu conto maluco...

    parabéns!

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  2. Ai amigo, me fez até chorar o inicio desse conto, me lembrando do meu tempo de adolescente!Parabéns!!! Paca, tatu!!!!ok?rsrsrsrsrs bjinhuuuuuu

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  3. Hugo
    Este é mais um Clássico da Literatura Gudense! Como conheço a casa de Iguaba, consigo também ver o filme completo na minha cabeça. O legal também é perceber (este conto é um pouco mais antigo) a evolução de teu texto (estou lendo dos mais recentes para os mais antigos). Muito boa a história do Mondrongão. Acho que tua obra toda é um tributo ao Gudo! Que venham mais histórias, da memória e novas que ele cometa!

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